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As linhas das mangas saborosas


"To the basement people,
 to the basement,
 many surprises await you."

Undercover Martyn, Two Door Cinema Club.

 Estive Perto do coração selvagem e desentendi um tanto de coisas. Clarice sabe provocar!, e como encanta. Pude também provar da sutil Metamorfose e embasbacar ao final da leitura kafkiana... Realmente, a literatura transporta
 Sabe, sou muito grato a Clarice por ela me reconciliar com o Divino, a Natureza, a transcendência nossa de cada dia. Não é sempre que se sente o não sentido, que se enxerga para além da caverna...

"A perfeição de Deus prova-se mais na impossibilidade do milagre do que na sua possibilidade. Fazer milagres, para um Deus humanizado das religiões, é ser injusto - milhares de pessoas precisam igualmente e ao mesmo tempo desse milagre - ou   reconhecer um erro, corrigindo-o - o que, mais do que uma bondade ou 'prova de caráter', significa ter errado.".

Perto do coração selvagem, Clarice Lispector.

 A existência é sempre uma questão para mim, estar nesse mundo por si só já é uma grande provocação e eu respondo às urgências dessa Terra com as ferramentas que me pareceram até então interessantes. A literatura, como uma dessas ferramentas, trás respostas, como esta teológica, mas, para mim, ela é ainda mais interessante quando suscita perguntas, quando desconstrói ou mesmo quando entorpece.
 Franz Kafka sempre foi um autor com o qual eu paquerava na estante, mas não tinha tido a coragem devida para encará-lo nos olhos, ou nas perninhas. Mas foi numa ímpeta decisão que me lancei diante dos livros que tenho em meu quarto e puxei prontamente A Metamorfose. Eu estava seriamente interessado em conhecer a história do jovem trabalhador Gregor que num belo dia se transformou em um inseto, para muitos leitores interpretado como uma barata.

"- Ele tem que ir embora! - gritou a irmã. - É o único jeito, pai. O senhor precisa se desfazer da ideia de que aquilo é Gregor. Acreditar nisso, durante tanto tempo, tem sido a nossa desgraça. Como pode ser Gregor? Se fosse, há muito teria percebido que seres humanos não podem viver com um bicho como aquele. E teria partido por conta própria. Perderíamos o irmão, mas poderíamos continuar vivendo com o verdadeiro Gregor em nossa memória, para sempre. Mas esse animal nos persegue, expulsa nossos inquilinos e dá mostras de que quer tomar conta do apartamento, colocando-nos no olho da rua. Olhe, pai! - gritou subitamente. - Está começando tudo de novo!".

A Metamorfose, Franz Kafka.

 O que mais me surpreendeu nessa novela é a crueza com que o autor expõe a natureza dos homens, suas facetas, suas tragédias, e de uma maneira ensurdecedora, sem fazer barulho. Kafka constrói sua narrativa de modo tão próximo do nosso cotidiano, mas com elementos fantásticos. Eu me questionei: será que eu já não acordei feito Gregor? Afinal, quando é que acordamos feito Gregor, estranho a nós mesmos, irreconhecíveis e, pior, discriminados? 

"E, querendo ficar com a voz mais nítida para participar decisivamente das conversas relacionadas a ele, tossiu ligeiramente, atenuando, porém, o barulho, temendo que este soasse não humano, ao mesmo tempo em que se sentia inábil para distinguir uma coisa da outra.".

 A Metamorfose, Franz Kafka.

 Selvagem e estranho. Essa leitura nos transporta para o que muitas vezes passamos despercebidos: somos animais; 'humanos' já não se sabe o quão ou por quanto tempo, no entanto, somos animais. Somos cheios de instintos e por isso mesmo frágeis, inseguros e incertos. E o que Kafka revela ainda mais em seu texto é que estamos entregues a um sistema burguês cruel por descartar o que não pode mais ser consumido.

"Na cama silenciosa, flutuante na escuridão, aconchega-se como no ventre perdido e esquece. Tudo é vago, leve e mudo.". 

 Perto do coração selvagem, Clarice Lispector.

 A literatura ensurdece de pânico, mas também revela um mundo (im)possível no qual caminhamos diariamente muitas vezes sem o perceber, sem nos perceber. A literatura é fruta que despenca, que gruda nos dentes - entranha. Que tenhamos todos boas leituras nesse ano que começa, indigestas, ao menos. Até.

Um comentário:

  1. indigestas se possível. Devemos trabalhar a mente, precisamos digerir. Tenho que digerir isso tudo que li. Difícil

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