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O Contágio

 "Ora, a mensagem que, da parte dele, 
temos ouvido e vos anunciamos é esta:
que Deus é a luz, e não há nele 
treva nenhuma."

I João 1.5
 

 A Quaresma havia chegado ao fim, no céu os abutres sinalizavam o acontecido. O menino assistia de perto o velório e chorava timidamente para que ninguém viesse consolá-lo. Ele conhecia pela primeira vez a morte. Impiedosa, pensava, desrespeitosa; e continuava a chorar.
O corpo velado cheirava mal. Cadáver nu, exposto na maior violência. Muitos dos que ali estavam, abatidos pela noite mal dormida, horrizados com o acidente, comentavam pelos cantos sobre a nudez cadavérica, enquanto o menino minguava, chorando chorando. Um dos senhores comentava:
- Disconjuro, onde já se viu expor o defunto assim, em plena luz do dia!
 Ao ouvir o senhor, o menino sorria, chorava e sorria e minguava, veja só, era meio-dia. Os veladores passaram então a bolar uma maneira de escamotear a nudez do defunto. O palpite acertado foi então realizado, fecharam as janelas e portas afim de que se escurecesse o ambiente. O menino quietinho chorando pingado, manso, escutava o cancioneiro lá de fora: "valha-me Deus, pro inferno".
A noite caía, os abutres cansados, pousaram pacientemente em cima da casa. Lá dentro o corpo vigiado fedia fechado impregnando os outros corpos, contagiando os odores e tatos. O menino chorava distraidamente, já nem sabia mais o motivo. E, distraidamente, foi que começou a notar os vaga-lumes que no espaço invadiam. Pouco a pouco iam rodeando partes desnudas, deslizes do corpo velado, incidentes apagados, trechos de uma vida inteira inventada, nauseantes.
 Os vigilantes se espantaram, seria um fenômeno da natureza ainda não descoberto? Seria um milagre? Um velador deu a ideia de abrir as portas e janelas para que os vaga-lumes indiscretos pudessem sair. Um voluntário dirigiu-se para porta e ao tentar abrí-la, braquejou vencido. Ela estava irremediavelmente trancada, assim como as janelas, como puderam comprovar posteriormente.
 O desespero tomou a todos, até mesmo ao menino que, às mínguas, chorava chorava, agora atentamente. Chorava chorava, contagiando todos os cômodos, enchendo-os pouco a pouco, criando poças, inundando os pisos, alcançando os móveis. Chorava chorava, afogando os vigilantes, sensíveis desavisados.
Dias depois, ouviu-se pela cidade que naquela noite apenas um corpo barato menino boiara.

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